O músculo transverso abdominal e sua função de estabilização da coluna lombar

Klíssia Mirelli Cavalcanti Gouveia. Ericson Cavalcante Gouveia.


INTRODUÇÃO

A estabilidade da cintura pélvica e da coluna lombar tem uma grande importância no equilíbrio corporal. A pelve transmite as forças do peso da cabeça, do tronco e das extremidades superiores e as forças ascendentes dos membros inferiores. Enquanto a coluna lombar é a principal região do corpo responsável pela sustentação das cargas (1). Além disso, a fáscia tóraco-lombar e suas potentes inserções musculares também possuem uma função relevante na estabilização da região lombopélvica (2, 3).
Os músculos do tronco são divididos em dois grupos: os músculos profundos, que são os oblíquos internos, o transverso abdominal e os multífidos; e os músculos superficiais, que são os oblíquos externos, os eretores espinhais e o reto abdominal. Todas essas musculaturas, de uma forma geral, contribuem para o suporte da coluna vertebral e da pelve. Porém, especificamente, os músculos abdominais possuem um importante papel na estabilização da coluna lombar e da cintura pélvica (4, 5, 6).
Segundo Norris (7), o músculo reto abdominal é o principal flexor do tronco; os músculosoblíquos internos e externos, além de participarem da flexão, têm funções, de acordo com a orientação de suas fibras, de rotação, inclinação lateral e estabilidade durante o exercício abdominal (8, 9).

O músculo transverso do abdome é circunferencial, localizado profundamente e possui inserções na fáscia tóraco-lombar, na bainha do reto do abdome, no diafragma, na crista ilíaca e nas seis superfícies costais inferiores (10). Por conta das suas características anatômicas, como a distribuição de seus tipos de fibras, sua relação com os sistemas fasciais, sua localização profunda e sua possível atividade contra as forças gravitacionais durante a postura estática e a marcha, possui uma pequena participação nos movimentos, sendo um músculo preferencialmente estabilizador da coluna lombar (11).

Como os músculos abdominais possuem relevância na estabilização da região lombopélvica,a diminuição da atividade destes músculos faz com que a flexão do quadril seja realizada sem a estabilidade necessária, permitindo que o músculo psoas exerça tração sobre o aspecto anterior das vértebras lombares, levando a uma anteversão pélvica e um aumento da lordose lombar (12). Com o passar do tempo, os tecidos podem se adaptar a essa nova postura, que frequentemente está associada a uma série de disfunções, entre elas: a espondilolistese e as degenerações discais e facetárias (13).

Uma das queixas mais comuns da população é a lombalgia, segundo a Organização Mundial da Saúde cerca de 80% dos adultos terão pelo menos uma crise de dor lombar durante a sua vida, e 90% destes apresentarão mais de um episódio. A lombalgia é a causa mais comum de absenteísmo no trabalho nos países desenvolvidos, causando além de um problema médico, um déficit econômico (14).

Em indivíduos que não possuem lombalgia, conforme Hodges e Richardson, o transverso do abdome é ativado antes do início dos movimentos dos membros. Por ser esse músculo uma estrutura essencial para estabilizar a coluna lombar, a teoria atual preconiza que ao realizar exercícios para a parede abdominal seja enfatizado o recrutamento específico do transverso do abdome, em vez de fortalecimento e endurance gerais (12). Portanto, a identificação do desequilíbrio da musculatura da parede abdominal pode permitir sua correção, podendo evitar ou minimizar estas modificações posturais. O presente trabalho teve por objetivo abordar sobre o músculo transverso do abdome e a sua função de estabilização da coluna lombar.

A estabilização vertebral

A estabilidade vertebral depende da integração entre 3 elementos: o sistema passivo que consiste dos corpos vertebrais, articulações facetarias, cápsulas articulares, ligamentos espinhais, discos intervertebrais e participam da estabilização por meio das propriedades viscoelásticas; o sistema ativo, o qual é constituído dos músculos espinhais e seus tendões; e o controle neural que recebe informações dos sistemas passivo e ativo, por meio dos receptores, e tem o papel de captar as alterações de equilíbrio e determinar os ajustes específicos, por meio da musculatura da coluna, restaurando a estabilidade (15).

Quando um desses sistemas falha os outros dois se reorganizam para dar continuidade a homeostase. Porém, muitas vezes, essa reorganização é inadequada sobrecarregando os subsistemas, promovendo uma cronicidade da disfunção-instabilidade vertebral (15, 16).
O músculo transverso abdominal O transverso abdominal foi considerado um importante estabilizador da coluna lombar a partir do conhecimento da sua relação com a fáscia tóraco-lombar e a pressão intra-abdominal, e da participação destas na estabilidade lombar (17). A partir desse momento, outros trabalhos foram realizados, relacionando os músculos que possuem suas inserções na coluna vertebral como geradores de estabilidade desta estrutura. Acreditando-se que o transverso do abdome possui um papel de destaque em relação aos outros músculos abdominais (15, 18, 19).

Pesquisas dos músculos abdominais profundos, através de eletromiografia, mostraram que o transverso abdominal é o principal músculo gerador da pressão intra-abdominal (12, 20). O aumento da pressão no interior do abdome e na tensão da fáscia tóraco-lombar ocorre com a contração do músculo transverso, que resulta em uma diminuição da circunferência abdominal, devido à orientação horizontal das suas fibras (21, 22). Por meio deste mecanismo, há uma redução na compressão axial e nas forças de cisalhamento e uma transmissão destas em uma área maior, promovendo uma maior estabilidade à coluna durante o levantamento de cargas elevadas (22).

Vários estudiosos demonstraram que os músculos que possuem maior função estabilizadorasão os multífidos, transverso abdominal e oblíquo interno agindo em co-contração, principalmente na antecipação de cargas aplicadas (12, 23, 24).
Por meio de um estudo eletromiográfico, Hodges e Richardson (25), constataram que o músculo transverso abdominal é o primeiro músculo a ser ativado durante movimentos dos membros, concluindo que este músculo é fundamental para a estabilização segmentar. Portanto, ao antecipar-se ao movimento produzido pela ação do agonista, o transverso abdominal atuaria promovendo uma rigidez necessária à coluna lombar, evitando qualquer instabilidade geradora de dor lombar (16, 20, 26).

Em indivíduos sãos, o transverso do abdome, para proteger a coluna, contrai-se antes dos movimentos das extremidades. Nos lombálgicos esta contração falha antes dos movimentos, demonstrando uma alteração na coordenação desse músculo (27). O atraso no início da contração do transverso abdominal indica um déficit do controle motor e resulta em uma estabilização muscular ineficiente da coluna (28).

Existem evidências que comprovam que a musculatura profunda do abdome, especialmente o transverso abdominal e multífido, é afetada na presença de dor lombar e instabilidade segmentar (28). Com a disfunção local ocorre uma substituição compensatória de músculos globais, que pode ser explicada pela tentativa do sistema neural em manter a estabilidade por meio da solicitação dos músculos globais (29).

Treinamento específico

Conforme Hodges (20), o transverso abdominal deve ser treinado separadamente dos outros músculos pelo fato dele ser o principal músculo afetado na lombalgia, perdendo sua função tônica.
Ainda, segundo Richardson (30), a contração do transverso abdominal, por meio de exercício específico, reduz significantemente a frouxidão da articulação sacroilíaca. Este achado, segundo o autor, confirma que o uso de contrações independentes deste músculo é útil para a lombalgia.
Corroborando com Hides (31), que por meio da ressonância Magnética, demonstrou que durante
a ação de abaixamento do abdome, o transverso abdominal bilateralmente forma uma banda músculofascial que pressiona o abdome, como um espartilho, e desenvolve a estabilização da região lombopélvica.

Pesquisas realizadas na Austrália mostraram que pacientes com dor lombar, embora tenham sido tratados por várias terapias, possuem algo em comum: os multífidus e transverso do abdome estão fracos. Eles também tem excesso de atividade dos músculos globais, como eretor da espinha e abdominais superficiais (32).

Antigamente, os programas de exercícios focavam os músculos globais mobilizadores como os exercícios abdominais ou de extensão da coluna. Porém, sem os estabilizadores fortes, estes não reduziriam as dores e ainda seriam lesivos, já que normalmente comprimem excessivamente as articulações. As pesquisas atuais demonstram que é necessário ativar os estabilizadores primeiro, por meio de exercícios sutis, precisos e específicos, o que impede um processo lesivo da coluna, assim como a redução da reincidência das disfunções espinhais (27, 32, 33).

Em 1995, Richardson já estabelecia a reeducação do transverso do abdome em pacientes com dor lombar, com bons resultados (11). O´Sullivan, em 1997, realizou um estudo comparando pacientes com lombalgia que utilizavam exercícios específicos baseados no trabalho de Richardson e outros com tratamentos diversos e exercícios gerais supervisionados (27). Obtendo melhores resultados no primeiro, apontando efetividade na reeducação do transverso abdominal. O mesmo autor, em 2000, utilizou os mesmos princípios de treinamento, comparando padrões de instabilidade lombar, e obteveresultados excelentes (29).

Os efeitos a longo prazo (1 a 3 anos) dos exercícios específicos, comparados com pacientes que utilizavam fármacos, foram analisados por Hodges. Uma menor recorrência de dor lombar foi observada no primeiro grupo (de 30 a 35%), em relação ao segundo (de 75 a 84%), comprovando a eficácia dos exercícios específicos para essa enfermidade (20).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que o músculo transverso possui outras funções em relação à respiração e em associação com os músculos pélvicos, porém não foi abordado por não ser objetivo da pesquisa. O estudo esclareceu e reforçou a função do músculo transverso abdominal de estabilizador lombar, a sua relação com a lombalgia e a importância de um treinamento mais específico para melhor executar a sua função.

Embora, tenham sido encontrados artigos bastante relevantes neste assunto, faz-se necessária a realização de pesquisas de caso-controle ou de coorte com amostras estatisticamente significantes, para melhor entendimento das funções do músculo transverso abdominal e com isso a utilização de exercíciosespecíficos e efetivos no tratamento da lombalgia que acomete uma grande parcela da população.


REFERÊNCIAS
1. Hall CM, Brody LT. Exercício terapêutico: na busca da função. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan; 2001.
2. Macintosh J, Bogduk N, Gracovetsky S. The biomechanics of the toracolumbar fascia. Clin
Biomech. 1987;(2):78-83.
3. Vleeming A, Pool Goudzar A, Stoeckart R. The posterior layer of the toracolumbar fascia: its
function in load transfer from spine to legs. Spine. 1995;20(7):753-758.
4. Cholewicki J, Mcgill SMN. Mechanical stability of the in vivo lumbar spine: implications for
injury and chronic low back pain. Clin Biomech. 1996;11(1):1-15.
5. Granata KP, Wilson SE. Trunk posture and spinal stability. Clin Biomech. 2001;16(8):650-659.
6. Cholewicki J, Vanvliet JJ. Relative contribution of trunk muscles to the stability of the lumbar
spine during isometric exertions. Clin Biomech. 2002;17(2):99-105.
7. Norris CM. Abdominal muscle training in sport. Br Journal Sports of Medicine. 1993;27(1):17-28.
8. Mirka GA. Selective recruitment of external oblique during axial torque production. Clin
Biomech. 1997;(67):1213-1217.
9. Kapandji AI. Fisiologia articular: tronco e coluna vertebral. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan; 2000. v. 3.
10. Dangelo JG. Anatomia humana básica. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2002.
11. Richardson CA, Jull GA. Muscle Control, pain control. What exercises would you prescribe?
Manual Therapy. 1995;1(1):1-2.
12. Hodges PW, Richardson CA. Inefficient muscular stabilization of the lumbar spine associated with
low back pain. A motor evaluation of transverses abdominis. Spine. 1996;21(22):2640-2650.
13. Scannell JP, Mcgill S. Lumbar Posture: Should It, and Can It, Be Modified? A study of passive
tissue stiffness and lumbar position during activities of daily living. Physical Therapy.
2003;83(10):907-917.
14. World Gate Brasil. O que você precisa saber sobre dor nas costas [Internet]. 2004. [Acesso
2007 ago 17]. Disponível em: .
15. Panjabi M. The stabilizing system of the spine. Part I. Function, dysfunction, adaptation, and
enhancement. J Spinal Disord. 1992;5(4):383-389.
16. Panjabi M. Clinical spinal instability and low back pain. J. Electromyogr. Kinesiol.
2003;13(4):371-379.
17. Tesh KM, Dunn JS, Evans, JH. The abdominal muscles and vertebral stability. Spine. 1987;
22(15):501-508.
18. Bergmark A. Stability of lumbar spine. A study in mechanical engineering. Acta Orthop. Scand.
1989;230(Suppl 1):1-54.
19. Wright A, Sluka KA. Nonpharmacological treatments for musculoskeletal pain. Clin J Pain.
2001;17(1):33-46.
20. Hodges P. Is there a role for transverses abdominis in lumbo-pelvic stability? Manual Therapy.
1999;4(2):74-86.

21. Cholewicky J, Juluru K. Intra-abdominal pressure mechanisms for stabilization the lumbar
spine. Journal of Biomechanics. 1999;32(1):13-17.
22. Norris CM. Stabilisation 3. Stabilisation mechanisms of the lumbar spine. Physiotherapy.
1995;81(2):72-79.
23. Hides J, Stokes MJ, Saide M. Evidence of lumbar multifidus muscle wasting ipsilateral to
symptoms in patients with acute/sucbacute low back pain. Spine. 1994;19(2):165-172.
24. O´Sullivan P, Twomey L, Allison GT. Altered abdominal muscle recruitment in patients with
chronic back pain following a specific exercise intervention. J Orthop Sports Phys Ther.
1998;27(2):114-124.
25. Hodges PW, Richardson CA. Contaction of the abdominal muscles associated with movement
of the lower limb. Phys Ther. 1997;77(2):132-142.
26. Kaigle AM, Holm SH, Hansson TH. Experimental instability in the lumbar spine. Spine. 1995;
4(20):421-430.
27. O´Sullivan PB, Phyty GD, Twoney LT, Alison GT. Evaluation of specific stabilizaing exercise
in the treatment of chronic low back pain with radiologic diagnosis of spondylolysis or
spondylolisthesis. Spine. 1997;22(24):2959-2967.
28. Hides J, Richardson C, Jull G. A multifidus muscle recovery is not automatic after resolution
of acute, first episode low back pain. Spine. 1996;21(23):2763-2769.
29. O´Sullivan PB. Lumbar segmental “instability”: clinical presentation and specific stabilizing
exercise management. Manual Therapy. 2000;5(1):2-12.
30. Richardson CA, Snijders CJ, Hides JA, Damen L, Pas MS, Storm J. The relationship between
the transversus abdominis muscles, sacroiliac joint mechanics, and low back pain. Spine. 2002;
27(4):399-405.
31. Hides J, Wilson S, Stanton W, McMahon S, Keto H, McMahon K, et al. An MRI investigation
into the function of the transversus abdominis muscle during “drawing-in” of the abdominal
wall. Spine. 2006;31(6):E175-178.
32. Comerford MJ, Mottram SL. Movement ans stability dysfunction – contemporary develop
ments. Man Ther. 2001;6(1):15-26.
33. Hides JA, Jull GA, Richardson CA. Long-term effects of specific stabilizing exercises for
first-episode low back pain. Spine. 2001;26(11):E243-248.

Nenhum comentário:

Postar um comentário